Há pelo menos três anos
a antropóloga americana Alexa Clay, 31, observa o comportamento da economia
informal – e algumas vezes ilegal – no sistema capitalista. O resultado da sua
subversiva pesquisa está no recém-lançado livro A Economia dos Desajustados:
Alternativas Informais para um Mundo em Crise, da editora Figurati, escrito em
parceria com a colega especialista em inovação social Kyra Maya Phillips. Estão
lá, entre dezenas de casos, relatos sobre a organização financeira dos piratas
da Somália e de hackers franceses que usam rotas de túneis subterrâneos para
invadir museus e restaurar obras de arte negligenciadas pelo governo.
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Para a autora, o
capitalismo está em crise e exige criatividade. Os desajustados, como ela
classifica na obra, são aqueles que não têm medo de questionar e reinventar a organização
econômica vigente. Muitos dos exemplos de sucesso do nosso tempo, afirma, foram,
antes, pessoas que buscaram meios alternativos para sobreviver. Steve Jobs,
diz, talvez seja o maior exemplo de desajustado que deu certo. "O espírito
alternativo e renegado que ele encorajou na Apple desde o início, quando a
indústria da informática era dominada por engravatados, foi representado num
infame comercial que celebrava ninguém menos que os desajustados”, escreve a
autora no livro.
Apesar de compilar
exemplos de sucesso à margem do sistema capitalista, ela alerta que o sentido
da sua pesquisa não é fomentar esse tipo de trajetória, e sim mostrar como o
espírito inovador, empreendedor e a tecnologia podem se aliar para criar novas
formas de organização social e econômica. “O questionamento de como sair do
sistema tradicional e como criar algo sustentável financeiramente para nós
vivermos de forma alternativa são saídas úteis a curto prazo que as pessoas
podem ter para lidar com a crise”, disse ao Motherboard.
Alexa esteve em São
Paulo e conversou com a gente sobre a formação de um novo sistema econômico
muito baseado no bom e velho “jeitinho”, que é atribuído a nós, brasileiros,
mas que está muito presente no empreendedorismo como um todo.
Crédito: Guilherme
Santana/ VICE
MOTHERBOARD: Qual é a
história por trás do seu livro?
Alexa Clay: Acho que,
no fundo, é uma certa frustração com a importância que o cenário do
empreendedorismo dá a si mesmo. Especificamente no caso de empreendedores do
Vale do Silício, com o Mark Zuckerberg e onde todo mundo estava venerando o
Steve Jobs, como se ele fosse algum deus. Então foi meio uma piada dizer “vamos
ver outros tipos de empreendedorismo na economia informal, na economia do
mercado negro” e aí ficou um lance sério. Comecei a fazer toda essa pesquisa e
falei “uau, puta merda, essas pessoas são incríveis”. Elas têm tanta
criatividade, sabe, o que nós podemos aprender com alguns desses diferentes
grupos que não são estudados e conhecidos?
"A gente não foi
parte do processo de construção das instituições capitalistas que existem hoje,
que não são humanas. Estamos nos rebelando contra isso."
A economia dos
desajustados sempre existiu ou é um fenômeno da modernidade?
Um pouco dos dois.
Certamente sempre existiram histórias incríveis desses tipos de Robin Hoods, de
figuras fora-da-lei, excluídos. Estudei muito de história da economia, então
foi fascinante aprender sobre piratas, por exemplo, e como eles costumavam
criar constituições democráticas para governar seus navios. E também como no
século XVIII os EUA foram construídos por roubo de patentes. Os americanos roubaram
patentes de países europeus ocidentais e trouxeram para os EUA para comercializar.
Totalmente ilegal. E esse foi o modo como os EUA se industrializaram. Então é
um pouco irônico que agora os EUA estejam dando lição de moral na China, no Brasil,
na Índia, países que têm uma flexibilidade de patente maior. Mas, sim, a
história do capitalismo é também a história da economia underground. Antes do
McDonald’s virar uma franquia a cada esquina, existia a máfia que fazia
franquias, as gangues que usam esses tipos de métodos de organização. Então eu
acho que as economias à sombra acontecem em momentos de transição da economia.
Já vimos isso antes, o crescimento da economia informal, especialmente no sul
da Europa, após a crise financeira. Mais e mais pessoas também sentem que não
querem trabalhar em instituições tradicionais. Então estão tentando ser mais
proativos.
É algo da geração
millenial?
Sim, porque acho que a
gente não foi parte do processo de construção das instituições capitalistas que
existem hoje, que não são humanas. Estamos nos rebelando contra isso. Faz parte
de uma abordagem geracional. Somos uma geração de muitas coisas, eu mesma sou
escritora, estrategista, professora. Você usa a máscara que você precisa para
cada situação.
Existe uma estimativa
do quanto essa economia move de dinheiro?
Sim, são 10 trilhões de
dólares. É muita coisa. Seria uma economia abaixo dos EUA, se você agregasse
todo o mundo. Em alguns países, é mais. 60% a 70% da economia do Quênia é
informal, por exemplo.
A economia dos
desajustados está sempre ligada a questões ilegais?
Não. Entrevistamos
muita gente interessada em economia alternativa. Grupos hackers, por exemplo.
Às vezes é um mercado cinzento; você tem algumas atividades sendo
desenvolvidas, mas que as pessoas não sabem exatamente como é a legislação em
torno das coisas. Mas tem um cara, por exemplo, que é um ladrão de bancos famoso
na Espanha, ele tomou empréstimos de meio milhão de euros e nunca pagou de
volta e deu o dinheiro para grupos de ativistas. Agora é alguém que está
construindo sua própria moeda.
Mas essa economia está
sempre ligada às atividades informais?
Sim, na maioria das
vezes. Existem histórias de pessoas nessa linha, como os amish criadores de
camelos, que precisam conseguir regulamentar o negócio deles. Mas também tem
essas pessoas de identidade de desajustados no sistema. São pessoas que estão
tentando transformar a cultura de negócios grandes. Uma das histórias é desse
cara que tentou encontrar um novo jeito de tratar a violência pelo mundo. Não
são atividades ilegais, mas são rejeitadas por pessoas que são muito
conservadoras, ortodoxas, porque são coisas novas, que rompem. O que estamos
tentando fazer é recriar esse cenário de inovadores underground que estão no
mercado negro; os inovadores de dentro, que lutam contra o sistema por dentro;
tem os artistas e boêmios, que caem fora do sistema; e as pessoas que são
ativistas, que estão numa situação antagônica ao sistema. São esses quatro
tipos de personalidades que observamos.
Você diz no livro que o
Steve Jobs é um desajustado. Por quê?
Acho que ele tem um DNA
desajustado. Acho que essa ideia de que todo mundo deveria viver o roteiro da
vida do Steve Jobs é horrível. Ele era uma pessoa horrível em muitos aspectos.
Mas, sim, ele tinha essa personalidade oprimida, ele costumava entrevistar as
pessoas para vaga de emprego e perguntar se elas usavam LSD, por exemplo, para
julgar a criatividade delas. Acho que o problema com o Steve Jobs é que, quando
você tem esse espírito de desajustado, todo mundo tenta fazer o mesmo que você
fez. A ideia não é mostrar essas histórias e incentivar todo mundo a imitar
essas histórias. As pessoas precisam descobrir o que funciona para elas.
Crédito: Guilherme
Santana/ VICE
Achei interessante você
colocar o Steve Jobs dessa forma porque ele é um dos maiores símbolos de
sucesso do capitalismo...
Exatamente. O Richard
Branson também. Ele começou trabalhando com bandas punk underground e aí ele
virou esse grande capitalista. Esse é parte do desafio também, pessoas que
começaram na contracultura e acabaram sendo absorvidas pelo sistema. Com a
Napster, por exemplo, com o John Parker também. Ele começou criando uma
tecnologia ilegal e aí monetizou pelo Facebook. Às vezes você tem uma linha
muito tênue entre a tradição e o novo. Até o Uber, que é meio ilegal em vários
lugares e muitas das suas táticas parecem de máfias em termos de como constroem
seu mercado.
"Esse
questionamento de como sair do sistema tradicional e criar algo sustentável financeiramente
é uma saída útil para que as pessoas possam lidar com a crise a curto
prazo"
Como você encontrou
essas histórias?
Diferentes formas.
Foram três anos andando por aí, falando com as pessoas. Às vezes ir a um país e
perguntar onde conseguir comprar drogas lá e ver se isso levava a uma conexão.
Outras vezes, nos movimentos Occupy, por exemplo, havia alguns reis latinos, as
pessoas de gangues das ruas, então colei neles. Mas é uma questão de estar
acordado. Se você quiser achar algo, você sabe as ruas em que você tem que ir e
começar a fazer perguntas.
Tem alguma história
interessante aqui no Brasil?
Sim. Estou trabalhando
em um novo livro e quero focar mais no Brasil. Fiz uma cobertura pequena pelo
Brasil sobre open source e inovadores copycats, pessoas que são muito flexíveis
com IPs, porque o Brasil tem uma regulamentação mais flexível em que as coisas
que são sobre o bem público não podem ser patenteadas. Isso é interessante. E o
espírito do “jeitinho”, esse tipo de coisa. Mas meu novo livro é sobre comunidades
com modos de vida alternativos e, no Brasil, tem todos esses movimentos
diferentes, essas vilas ecológicas que estão começando. Agora acabei de fazer
um curso sobre essa ideia de neotribos, com um monte de gente do Brasil
interessada em sair do sistema. Foi fascinante ver como as pessoas estão
explorando essa área e como eles podem aprender com movimentos hackers e
movimentos hippies do passado.
Como e por que os
desajustados questionam o sistema capitalista?
Tem várias coisas sobre
o capitalismo que não estão certas. Nós temos que evoluir. A desigualdade é uma
dessas coisas. Acho que a forma como os negócios tradicionais são estruturados
e o sistema de controle de hierarquia, sabe, as pessoas não gostam de viver
nessas culturas. Elas se sentem patológicas. As pessoas ficam doentes, elas não
se sentem elas mesmas, elas não estão inclusas. Então eu passei os últimos anos
conversando com pessoas que estão tentando criar um tipo alternativo de
sistema. Estamos em um momento de transição, então não é como se isso fosse o
desenho de uma nova economia; são alguns métodos pra gente se virar enquanto
estamos nesse momento de crise.
A economia dos
desajustados confronta o capitalismo?
Tentamos ser
equilibradas ao contar histórias, mas posso dizer que sou um pouco mais radical
do que a média dos leitores do livro. Você vai ver pessoas no livro, por
exemplo, que acreditam no capitalismo e estão tentando mudá-lo para permitir
que ele evolua e seja mais equitativo, que aceite diferentes tipos de
organizações. Mas tem pessoas no livro que não acreditam no capitalismo de
jeito nenhum. Para mim, é muito importante criar empatia com esses diferentes
tipos de atores. Às vezes pode ser o ativista que pode ajudar as pessoas de dentro
do sistema a mudar porque estão colocando a pressão para os negócios prestarem
atenção a uma questão. Pode ser o empreendedor que faz algo a respeito. Para
mim, o desafio é colocar todas essas pessoas diferentes para dançar a mesma
música para transformar as coisas. Mas eu diria que, bem, nós entrevistamos
algumas pessoas que eram marxistas, algumas que eram totalmente contra o
sistema, algumas mais tradicionais do tipo empreendedores do Vale do Silício,
algumas que eram amish e nem ao menos acreditavam em empreendedorismo
tradicional e sim em comunidades coletivas. Então, é um campo amplo. Mas as
personalidades dessas pessoas, mesmo que tenham diferentes relações com o
capitalismo, são as mesmas. Eles têm essa identidade rebelde.
Eles estão dando uma
nova forma ao capitalismo?
Alguns acham que estão
só maquiando o capitalismo, mudando sua cara, mas outros, ao criar moeda
digital ou afirmar que não querem centralizar o sistema financeiro, não. Eu
diria que os amish, na forma como eles se organizam, também; eles largaram o
sistema econômico tradicional de muitas formas. Então sim: acho que eles estão,
no mínimo, cutucando o capitalismo e fazendo com que ele evolua.
O Brasil enfrenta um
momento de crise. Você acha que essa nova economia pode ser uma saída?
Acho que sim. Esse
espírito de pressionar é importante. Acredito que, em momentos de crise, as
pessoas ficam com medo e voltam a fazer o que estavam fazendo antes, ao
tradicional. Mas, para ser sincera, quando fizemos o curso que eu falei na
semana passada, todo mundo dizia que não consegue mais viver no antigo sistema.
Todos brasileiros. Um cara ficou repetindo que não conseguia mais fazer as
coisas desse jeito. Outra pessoa disse que toda a criatividade dela estava
morrendo e ela não acreditava mais no governo. Então esse questionamento de
como sair do sistema tradicional e criar algo sustentável financeiramente para
viver de forma alternativa é uma saída útil para que as pessoas possam lidar
com a crise a curto prazo.
O que é preciso para
ser um desajustado?
Muita coragem e
autenticidade. A habilidade de ouvir a si mesmo e não seguir o caminho
tradicional, não ficar em um emprego só porque vai criar uma estabilidade na
sua vida, mas se perguntar o que te torna único e como usar a paixão e os
instintos para falar a verdade sobre o poder, não temer o desafio, as
instituições e culturas existentes. São coisas que vários desajustados têm em
comum. E eu acho que tem uma coisa incrível sobre aproveitar a oportunidade.
São pessoas que não aceitam não como resposta, pessoas que conseguem navegar
entre sistemas para usar o que eles precisam, sem entrar em um emprego que vai
drenar a sua energia e a sua humanidade, e ser muito estratégico na hora de
interagir com o sistema.
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