domingo, 17 de abril de 2016

Negros egípcios, claro



O embraquecimento histórico do Egito Antigo

Publicado há 6 dias - em 11 de abril de 2016 » Atualizado às 17:36
Categoria » África e sua diáspora


O poder e construção de memória coletiva dos veículos de massa é incalculável. Os textos, falas e sobretudo as imagens produzidas pela máquina midiática capitalista ocidental literalmente construíram toda a percepção de mundo do sujeito contemporâneo. Por isso países como os Estados Unidos da América dão tanta importância e poder aos grupos midiáticos. A imprensa e a indústria do entretenimento (não que hoje em dia ainda haja algum tipo de diferença entre as duas) é conhecida como o terceiro poder. Mas que essa ordem não seja entendida como de grandeza ou influência. Não raro o poder da mídia extrapola a legalidade dos poderes democráticos.

Por  Aline Couri Do História das Artes Visuais
O problema que intentamos em tratar passa por um dos pontos mais sensíveis da historiografia: A percepção história como uma construção contemporânea. O trabalho de um historiador é, entre tantas outras funções, criar narrativas que representem a visão de um povo em determinada época sobre determinado acontecimento, objeto, ou sociedade de outra época e local. Mas esse recorte essencial é, na maioria das vezes, ocultado pela própria narrativa historiográfica e tende a se colocar como verdade. Isso no campo da pesquisa acadêmica. No campo da mídia a questão é ainda mais grave. A indústria do Cinema norte americana produziu em um século mais distorção na percepção histórica do ocidente do que toda a escrita etnocêntrica dos quinze séculos anteriores. E tudo isso sob a chancela de “produto de entretenimento”.

Na lógica da dominação cultural, é importante que a cultura que se impõe elimine a possibilidade de resistência do outro eliminando tudo que possa ilustrar sua visão de mundo, sistema social e, mesmo sua identidade.

O caso do povo egípcio, nosso objeto de estudo, é um dos maiores exemplos desse processo de apagamento e falseamento da existência histórica de toda uma sociedade. Sendo impossível negar a existência do povo egípcio e sua sociedade extremante complexa e rica tecnologicamente, resta roubar suas descobertas e fazer com que a imagem que se tem deles não seja tão diferente da imagem que os europeus (desde os romanos) tinham de si mesmos.

Foram os antigos egípcios que inventaram, entre milhares de outras maravilhas tecnológicas, uma das primeiras mídias portáteis do mundo, o papiro. Não por caso Alexandria tinha uma das maiores bibliotecas do mundo antigo – destruída num incêndio que até hoje geram controvérsia entre os historiadores, mas cuja versão mais popular da narrativa diz ter sido proporcional, logo pós a conquista da cidade pelos árabes em 642 d.c. Mas os livros de história ocidentais nos dizem que Calímaco, um grego, foi o responsável por criar o primeiro sistema de catalogação de arquivos, muito similar ao adotado por Roma e por todo o ocidente moderno. Esse sistema, na realidade, é apenas uma adaptação do que era usado na biblioteca de Alexandria, cidade visitada por Calímaco.

A imagem do Egito antigo que temos no senso comum do ocidente contemporâneo é tão artificial que uma criança dificilmente associa o Egito ao seu continente, a África. Aliás, que eu me lembre de colégio, a história do Egito é ensinada em separado da história do resto da África (quando essa é ensinada).

O povo do Egito antigo era negro. Diversos textos antigos (gregos e árabes) assim os relatam. Na historiografia moderna porém, esses textos são ignorados. O processo de construção de uma imagem eurométrica do povo egípcio se dá de forma maquínica: Os relatos históricos apagam as menções à negritude dos egípcios; a arte, a literatura e a mídia ocidentalizam sua imagem (embranquecem a pele e normativizam suas relações sociais pelo padrão europeu); sua existência enquanto povo é dissociada da África.

O EGITO NEGRO
Cheikh Anta Diop (1923 – 1986), historiador, filósofo, antropólogo e político senegalês, foi o principal responsável por trazer a discussão da origem da raça e da civilização egípcias. Seu livro Nations nègres et culture: De l’antiquité nègre égyptienne aux problèmes culturels de l’Afrique Noire d’aujourd’hui (Nações negras e cultura: Da antiguidade negra egípcia aos problemas culturais da África negra de hoje, em tradução livre) publicado em 1954 e ainda sem tradução completa para o português, o autor argumenta, com base em diversos textos antigos (de autores bíblicos a documentos gregos), obras de arte egípcias de diversos períodos, análises comparativas (totemismo, circuncisão, realeza, cosmogonia, organização social, matriarcado – cada item em um capítulo), argumentos linguísticos (como, por exemplo, a existência de um termo próprio pelo qual o povo egípcio se representava, KMT, que significaria preto/do carvão), e estudos históricos e antropológicos sobre o povoamento da África a partir do vale do Nilo. Essa discussão ocupa todo a primeira parte do livro e não deixa dúvidas sobre a negritude do povo egípcio. Mas, mesmo sendo parte da coleção História Geral da África, o trabalho de Cheikh é academicamente sabotado em quase todo o mundo, como acontece com vários autores negros e terceiro-mundistas.

Cheikh já inicia seu texto com o argumento base de sua defesa da negritude do povo egípcio. Com base nas descobertas mais atuais da antropologia física nos anos 1950, o autor argumenta:

Portanto, se a humanidade teve origem nos trópicos, em tomo da latitude dos Grandes Lagos, ela certamente apresentava, no início, pigmentação escura, e foi pela diferenciação em outros climas que a matriz original se dividiu, mais tarde, em diferentes raças;  havia apenas duas rotas através das quais esses primeiros homens poderiam se deslocar, indo povoar os outros continentes: o Saara e o vale do Nilo.”

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