Reflexões
de uma antropóloga e mãe: ‘O que aprendi com índios sobre educação infantil’
in: Educação
“Eu e o
Martim fomos para a beira do rio, de onde havia saído uma canoa com crianças
bem pequenas – quatro, cinco, seis anos – lá para o fundo. (Mas) começou uma
ventania muito grande, o rio começou a ondular. De repente, vimos a canoa virar
no meio do rio. Não tinha um adulto, ninguém. Subi correndo para avisar os
adultos. Quando voltei, já tinha saído uma outra canoa, com outra turma (de
crianças), resgatado as outras. Elas nadaram, viraram a canoa e voltaram para a
beira. Estava tudo bem. Você vê que domínio sobre esse ambiente? É demais. Foi
na aldeia Deia Tuba-Tuba, do povo Yudjá. São conhecidos como exímios
navegadores.”
Por Mônica
Vasconcelos Do BBC
A antropóloga brasileira Camila Gauditano de
Cerqueira, de 37 anos, teve seu primeiro contato com uma aldeia indígena no
Brasil em 1992, aos 12 anos de idade. Sua mãe, a fotógrafa Rosa Gauditano,
especializada em fotografia indígena, levou-a consigo em uma visita à aldeia
Xavante Pimentel Barbosa (Mato Grosso).
Hoje, Camila dá consultoria sobre educação ao
Instituto Socioambiental (ISA). E em uma viagem de trabalho à terra indígena
Xingu, seguindo o exemplo da mãe, levou o filho pequeno, Martim, para visitar
três etnias que vivem na região: os Kisêdjê, Ikpeng e Yudja.
Em entrevista à BBC Brasil, Camila compartilha suas
reflexões sobre a experiência – e conta as lições que recebeu dos índios sobre
educação infantil.
O Parque Indígena do Xingu (PIX) fica no nordeste
do Mato Grosso, na porção sul da Amazônia brasileira. Xingu é o nome do rio que
atravessa o território, que tem 2.642.003 hectares e onde vivem 16 etnias.
Camila foi ao Xingu para conversar com diretores e
professores indígenas que ensinam nas escolas das aldeias visitadas. Enquanto
trabalhava, muitas vezes deixava Martim, na época com três anos, brincando com
as crianças das tribos.
Camila aos 16 anos, quando visitou a aldeia Xavante
Pimentel Barbosa com a mãe; mais tarde, ela repetiu a experiência com seu filho
de três anos
“Ele ficava com as crianças ou com as famílias das
crianças. Me sentia confiante. Por um lado, me perguntava, ‘onde será que ele
está, o que está fazendo?’ Aí pensava: ‘bem , está com as crianças, então está
seguro’. Não fiquei com receio porque são cuidadosos e dominam aquele
território.”
Camila teve várias provas disso.
O banho
O episódio da canoa virada no rio foi um entre
vários momentos em que se deu conta, maravilhada, de que crianças pequenas
podem muito mais do que imaginamos.
A relação peculiar com a água é o que permite tanta
desenvoltura da criança indígena num ambiente que poderia ser perigoso para as
da cidade, explica a antropóloga.
E tudo começa com o banho – algo que ela observou
já na primeira aldeia visitada, os Kisêdjê.
“O banho é o momento em que a criança se integra
com o ambiente da água. Aprende os limites do próprio corpo, desenvolve suas
potencialidades, a pesca, a navegação. O ambiente é preparado pela comunidade
para esse fim. Deixam o fundo bem limpinho, tiram o mato da beira do rio, você
sabe onde pode ir e onde não pode. Colocam uma estrutura feita com um tronco de
madeira onde você pode sentar a criança, ou lavar roupa”.
“Crianças menores ficam na beira; as maiores, mais
ao fundo; outros mergulham. É uma experiência do coletivo, das brincadeiras. A
criança pequena observa o que é possível fazer e realizar nesse lugar, de
acordo com suas capacidades, em diferentes fases. O Martim ficou encantado”.
Mas e os riscos para as crianças?
“Uma coisa é a gente ter contato esporadicamente
(com o rio). Outra coisa é o contato diário, duas, três vezes por dia. Você vai
se apropriar daqueles desafios, daquele ambiente. Há pouco espaço para perigo”.
Meninos caçadores
Na visita aos Kisêdjê, outros episódios chamaram a
atenção da antropóloga.
Uma tarde, Martim convidou um grupo de crianças da
aldeia para visitar a casa do ISA, onde ele e a mãe estavam hospedados.
“Os meninos foram com seus estilingues”, conta
Camila. “Aí viram que tinha morceguinho na casa e decidiram caçá-los com o
estilingue. Foi a primeira experiência do Martim de ver o bichinho, de ver a
habilidade do caçador, desenvolvida desde pequenininho. Deviam ter cinco ou
seis anos e conseguiram caçar o morcego.”
Birra
Em outra ocasião, na saída do banho, Camila
observou um jeito diferente de os pais lidarem com birra de criança.
“Não sei por que motivo, uma criança começou a
chorar muito. Os pais estavam saindo do rio, talvez ele quisesse ficar mais
tempo na água… Os pais simplesmente saíram andando. A criança foi atrás,
chorando”.
“Não tem essa bajulação, de ficar em cima, ‘o que
foi, o que aconteceu? Se você parar de chorar, te dou isso…’ Tomaram a atitude
de não alimentar a birra. Essa é uma observação muito pessoal, mas acho que o
princípio é, quanto menos bola se dá para a birra, mais a criança tem condições
de resolver suas próprias frustrações.”
Amamentação
Por outro lado, diz a antropóloga, não falta
atenção às crianças nas aldeias.
As mães têm total disponibilidade para estar com as
crianças. Enquanto são bebês, a mãe não sai para trabalhar na roça. “A família
faz esse trabalho por ela”, diz Camila. “Às vezes, até o marido tem restrições
para ir à roça quando tem bebê pequeno.”
Mais tarde, se a mãe vai à roça, tem a ajuda dos
parentes. “A criança pequena fica com a tia ou avó.”
Ou seja, não há a angústia ou a culpa da separação
que aflige tantas mães trabalhadoras nas cidades. Também não há a preocupação
com a amamentação – ou com o desmame:
“Já vi criança de três anos sendo amamentada. Lá é
livre demanda, quer mamar, mama. Na mãe, na tia, na avó… às vezes, a mãe saiu
mas a avó está ali e tem leite. Ela dá. É normal.”
A criança tem atenção constante, mas também tem
liberdade – se quiser.
“Quando a mãe vai para a roça, a criança, já mais
velha, vai com ela. Mas quando a mãe está em casa, na aldeia, as crianças estão
no pátio, indo atrás de passarinho, de bichinho, brincando”.
“A partir de três anos, já são bem mais
independentes em relação à mãe (do que as da cidade). Elas têm circulação livre
na aldeia, mas nunca estão sozinhas. Estão sempre acompanhadas de crianças do
mesmo tamanho ou maiores.”
“Na nossa sociedade você não tem esse apoio
coletivo que existe no convívio de aldeia. Não partilhamos a educação de nossos
filhos com a comunidade.”
‘Bijou e peixe’
Muitos povos indígenas no Brasil hoje incorporam
alimentos do homem branco em suas dietas. Comem arroz, feijão, açúcar e
farinha. Mas mantêm lavouras tradicionais, como a da mandioca, e praticam a
caça, a pesca e a coleta.
Hoje com cinco anos de idade, Martim ainda se
lembra das delícias que comeu no Xingu. Questionado pela BBC Brasil sobre o que
mais gostou de comer na viagem, ele responde:
“Bijou e peixe. É gostoso”, diz. “Um dia a gente
vai voltar lá. É muito gostoso e um dia eu quero voltar lá.”
Bijou é uma tapioca grande que os índios comem com
peixe assado, explica Camila. Na aldeia todos comem juntos. As crianças comem o
que tem. E desde cedo aprendem a coletar frutos da época. Também acompanham o
adultos na caça e pesca.
“Desde cedo, aprendem a pegar seu peixinho.”
Preguiça e brigas
De volta à cidade, Camila diz que se esforça para
manter a cultura indígena viva na imaginação do filho.
“Um dia desses, o Martim estava com preguiça de
acordar para ir à escola. Então, contei uma história para ele”, diz a
antropóloga.
“Tem um povo que mora numa aldeia. De manhã, quando
esse povo acorda, em geral é muito frio porque o sol ainda não nasceu.”
“Geralmente, as crianças também ficam com preguiça.
Mas os mais velhos dizem que quem levanta cedo para tomar banho no rio fica
saudável, forte e corajoso. Contei para ele como uma motivação. No final,
expliquei que esse é o povo Xavante.”
E para ensinar Martim a não brigar por besteira,
Camila planeja levá-lo à terra Xavante para que ele participe de um ritual
especial:
“Na aldeia Xavante, quando as crianças ficam
brigando sem motivo, os mais velhos decidem em conselho que é hora de organizar
o ritual Oi´Ó. Os índios tiram uma raiz da terra que funciona como instrumento
de luta. Tem uma regra para se lutar: você (só pode) acertar seu companheiro de
luta do ombro para baixo. A ideia é que as crianças aprendam o que é brigar de
verdade, sentir dor de verdade. Lutam em duplas, um de cada clã (há dois clãs
no povo Xavante), enfeitados e pintados, e a aldeia inteira assiste.”
O povo Xavante é um povo guerreiro, daí o ritual,
explica Camila. Ela não vê, no entanto, riscos para Martim.
“Fazem isso desde pequenos, desde os dois aninhos
de idade até 14, 15. As duplas são escolhidas de acordo com o tamanho, têm o
mesmo biotipo. E essa raiz é forte, mas não vai cortar ou furar. Vai ser
importante para o Martim”, diz.
Lições
As histórias sugerem, por exemplo, que a criança a
partir dos três anos de idade pode ganhar mais autonomia do que costuma ter na
nossa sociedade.
Ela diz, no entanto, que não vê sentido em
tentarmos transpor, de forma literal, para a nossa cultura, o modelo oferecido
pelos povos indígenas.
São sistemas diferentes que respondem a contextos
diferentes, explica.
Para quem deseja aprender com o índio, “o ponto de
partida é a integração de um povo indígena com o ambiente em que vive”. Isso
significa integrarmos nossas crianças com o ambiente delas: “O quintal de casa,
a terra, as plantas, os parques, as praças, a rua, a comunidade”.
“Você não precisa estar numa aldeia indígena para
ter uma relação integrada com o seu meio. Pode desligar aparelhos celulares e
tablets, ampliar a observação, a escuta, as possibilidades que sua própria
realidade traz (para a criança).”
Martim passou 20 dias em convívio intenso com modos
de vida tão diferentes dos dele. O que terá ficado, dessa experiência, para um
menino tão pequeno?
“Como foi pouco tempo, o aprendizado foi ampliar a
percepção da realidade. A relação com a diferença amplia o conceito de mundo.
Você descobre que não há uma verdade absoluta, há muitas maneiras de se ser e
de se estar no mundo – e essa é nossa maior riqueza.”
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